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As "cadeias” da nova escravidão nem sempre são físicas. O medo, o isolamento e as dívidas são usados para submeter uma pessoa à uma situação , contra sua vontade.
fonte : ADITAL - http://www.adital.com.br/site/autor.asp?lang=PT&cod=14283
No último ano, estatísticas sobre diversos setores das lutas populares se agravaram. Por outro lado, 2013 é considerado um ano importante para as mobilizações populares, alterando a agenda de debates e chamando a população brasileira à discussão. A informação é do Relatório Anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que aponta que os conflitos e a violência no campo atingem, indiscriminadamente, famílias inteiras, homens, mulheres, idosos, jovens e crianças.
O estudo mostra que, diferentemente do restante do Brasil, na Amazônia o número de famílias despejadas em 2013 cresceu 76%. "Como em anos anteriores, os conflitos ganham em número e intensidade nas áreas para onde o capital avança”, destaca a CPT. "Barragens para usinas hidrelétricas, mineração, grilagem de terras, extração de madeira e monoculturas (pecuária, soja, dendê, eucalipto) avançam sobre terras indígenas, quilombolas e de outras comunidades camponesas. A Amazônia continua sendo considerada colônia, fonte de recursos naturais a serem explorados pelo resto do Brasil e do mundo”, explica a publicação.
Com relação à escravidão no campo e na cidade, as estatísticas indicam que 2013 foi o primeiro ano em que o número de resgates no trabalho escravo urbano foi maior do que no rural. A novidade, afirma a CPT, estaria relacionada a uma atenção crescente das equipes de fiscalização com as condições dos trabalhadores de setores econômicos tipicamente urbanos, como a construção civil e a indústria têxtil.
Dos 2.242 trabalhadores resgatados no ano passado no Brasil, 1.153 foram libertados em atividades não rurais, o que representa 51% do total de pessoas retiradas dessas condições. Ainda assim, é no campo que se concentra o maior número de casos de trabalho escravo, com 141 ocorrências (70% do total). "O que se pode destacar é que boa parte dos trabalhadores resgatados no meio urbano foi aliciada no campo”, enfatiza a CPT. Os casos estão ligados à mineração, desmatamento, reflorestamento, carvão vegetal, extrativismo vegetal, cana-de-açúcar e outras lavouras, além da pecuária.
No que diz respeito à violência contra as mulheres, segundo o documento, em 2013, os dados registrados pela CPT indicam que três das 34 pessoas assassinadas são mulheres; uma delas figura entre as 15 pessoas que sofreram tentativa de assassinato; e 40 outras estão registradas entre as 241 pessoas ameaçadas de morte.
Com relação ao número de conflitos e violência contra povos indígenas e comunidades tradicionais, houve um pequeno recuo de 2012 para 2013. Foram registrados 1.266 conflitos no ano passado, quando, em 2012, foram 1.364, referentes a conflitos por terra, trabalhistas e outros. O número de conflitos pela água apresentou crescimento de 32%. Já quanto ao número de violências contra a pessoa, o registro de assassinatos apresentou pequeno declínio de 36 para 34 casos.
No quadro de violências, houve 829 vítimas de assassinatos, ameaças de morte, prisões, intimidações, tentativas de assassinato e outras (238 delas são indígenas). Os estados que lideram o ranking da violência contra índios são Mato Grosso do Sul e Bahia. Por outro lado, no último ano, as ações indígenas se multiplicaram em todas as regiões brasileiras. Foram 156 manifestações, envolvendo 35.208 indígenas. Houve também 61 retomadas de antigos territórios.
Segundo Antônio Canuto, secretário da Coordenação Nacional da CPT, em entrevista à Adital, a Reforma Agrária não está na pauta do governo e o diálogo com as lutas populares é complicado. Ele explica: "O governo do PT [Partidos dos Trabalhadores] fez várias ações afirmativas, como o Bolsa Família. Setores dos movimentos sociais ficaram satisfeitos e esmoreceram, ficaram fragilizados. Mas essas ações não respondem a necessidades fundamentais, como a reforma agrária, e os movimentos não batem de frente, porque o PT ainda é considerado aliado”.
Como se construiu o relatório
A violência em torno dos conflitos no campo começou a ser registrada no final da década de 1970. Os dados são obtidos por meio de agentes das Regionais da CPT, declarações, cartas assinadas, boletins de ocorrência, relatos repassados pelos movimentos sociais, igrejas, sindicatos e outras organizações e entidades ligadas às lutas das trabalhadoras e trabalhadores. Além disso, são recolhidas informações de revistas, jornais, boletins e publicações diversas de instituições, partidos e órgãos governamentais.
"O que esse relatório registra é apenas uma parte da realidade, os conflitos e a violência que de alguma forma chegam ao nosso conhecimento. Muitíssimos mais casos acontecem nessa imensidão do Brasil e que só são conhecidos por quem sofre a violência ou pelas famílias e comunidades envolvidas em algum conflito”, conclui a coordenação nacional da CPT.
POLÍTICA
Escravidão em tempos modernos, por Marcelo Freixo
Marcelo Freixo, O Globo
06 de maio de 2014
Após 13 horas golpeando o canavial da fazenda com seu facão, o negro Romário chega, sob os últimos raios de sol, ao barraco minúsculo onde vive trancafiado com outros três homens, igualmente escravizados e negros. O espaço não tem janela, água tratada e conta apenas com duas camas. Apesar disso, ele precisa comer os restos que o capataz lhe oferece e descansar: às 4h do dia seguinte, a labuta recomeça. Se resistir, será agredido com chicotadas e pauladas.
A cena poderia estar registrada no diário de algum cronista que passou pelo Brasil colonial no século XVII e visitou engenhos de açúcar no Recôncavo Baiano ou no litoral de Pernambuco. Infelizmente, não é o caso.
Embora subjugados pela miséria, Romário Rosa e seus companheiros de lida eram homens livres até chegarem a uma fazenda na localidade de Angelim, em São Fidélis, no Norte Fluminense. Enganados pelo proprietário, foram escravizados por mais de dez anos. No dia 26 de abril, a polícia prendeu três pessoas: o fazendeiro, seu filho e o capataz.
Romário Rosa, vítima de escravidão, reencontra a família
Essa história pavorosa lembra uma passagem do livro “Formação do Brasil contemporâneo”, de Caio Prado Jr., publicado em 1942:
“O passado, aquele passado colonial, aí ainda está, e bem saliente; em parte modificado, é certo, mas presente em traços que não se deixam iludir.” Nenhum país convive tanto tempo com a escravidão impunemente.
São Fidélis não é exceção. Entre 1995 e 2012, fiscais do Ministério do Trabalho resgataram 44.415 pessoas submetidas a condições análogas ao regime escravista. No último relatório produzido, a maior quantidade de flagrantes ocorreu no Pará, onde foram encontrados 563 trabalhadores.
O estado foi seguido por Minas Gerais, com 394, e Tocantins (321). No Rio de Janeiro, foram registrados 14 casos dos 2.750 verificados no país. Apesar dessa tragédia, a PEC do Trabalho Escravo se arrasta no Congresso Nacional há inacreditáveis 15 anos, graças ao lobby dos ruralistas. Eles resistem porque a proposta prevê a desapropriação de terras onde haja trabalho escravo.
O Rio de Janeiro esteve no topo do ranking em 2009, quando 521 pessoas foram resgatadas em cinco estabelecimentos. A maior parte delas vivia em fazendas de cana em Campos dos Goytacazes. Os números chocam, mas a situação persiste.
Em 2010, o Ministério Público Federal denunciou à 1ª Vara Federal de Campos seis gestores da usina açucareira Santa Cruz pelo crime. Os trabalhadores tiveram as carteiras de trabalho retidas e não recebiam devidamente seus salários.
No ano seguinte, uma operação conjunta do Ministério do Trabalho, do Ministério Público e da Polícia Rodoviária Federal flagrou 20 pessoas — entre elas cinco menores — trabalhando em condições análogas na Fazenda Lagoa Limpa.
Passamos pelos períodos colonial, imperial e republicano sem enfrentar a questão agrária. Herdamos uma estrutura excludente e concentradora de riquezas, mas não realizamos a reforma que poderia diminuir as injustiças no campo e as pressões migratórias para as cidades.
A consequência não é só o trabalho escravo, mas o crescimento da violência nas áreas rurais, motivada por conflitos fundiários. Segundo o Relatório Anual Conflitos do Campo Brasil 2012, da Comissão Pastoral da Terra, houve um crescimento de 24% no número de homicídios e de 102% nas tentativas de assassinatos, em 2011 e 2012. A quantidade de famílias vítimas de crimes de pistolagem subiu de 15.456 para 19.968 (30%).
Apesar dos exemplos, a nossa herança escravocrata não se restringe ao campo. Ela impregna as instituições, o acesso a direitos fundamentais, as nossas relações cotidianas mais banais. Como escreveu Caio Prado, aquele passado colonial ainda está presente naqueles quartinhos apertados construídos nos fundos dos apartamentos; na resistência a reconhecer os direitos trabalhistas das empregadas domésticas; na proibição de uma babá entrar num clube da Zona Sul sem seu distintivo uniforme; na criminalização do funk; no êxtase provocado pelo justiçamento de um adolescente acorrentado a um poste; no assassinato de jovens negros nas favelas; na negação da humanidade da massa carcerária brasileira...
Marcelo Freixo é deputado estadual (PSOL-RJ).
Leia a íntegra em Escravidão em tempos modernos
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