Apelação
Cível nº 421.824.4/5-00 – Comarca de Bragança Paulista
Apelantes: Jelena
Érika Maria Kibijan de Godoy e Outros
Apelado: Ministério
Público do Estado de São Paulo
1. Trata-se
de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo
contra Getúlio Florêncio de Godoy, Jelena Érika Maria Kibijan de Godoy, Daltro
Vidal Brasiliense de Godoy, Gislene Virginia de Godoy e Aneli Ariani de Godoy, que
promoveram um loteamento irregular, sob a denominação de “Residencial Bocaina”,
pois não havia qualquer licença por parte dos órgãos competentes.
O
ilustre Magistrado julgou a ação procedente para o fim de condenar os
requeridos a promoverem a regularização do loteamento “Residencial Bocaina”,
elaborando um projeto que obedeça a todas as leis pertinentes, o que abrange a
incumbência de dedicar as áreas reservadas, adquirindo-as se não as possuírem,
aprovando o referido projeto nos órgãos competentes, municipais e estaduais e
registrando-o no Oficial de Registro de Imóveis, podendo, naturalmente,
aproveitar a divisão atualmente estabelecida para preservar o direito dos
adquirentes. Deverão, ainda, promover a infra-estrutura necessária. Além disso,
concedeu-se o prazo de seis meses para o registro do projeto aprovado no
Oficial de Registro de Imóveis, sob pena de responderem pela multa mensal de R$
50.000,00, a ser depositada ao Fundo Estadual de Reparação de Interesses
Difusos Lesados.
O
Ministério Público ofereceu suas contra-razões, requerendo o não provimento do
recurso.
Este
é, em síntese, o relatório.
2. O
apelo deve ser improvido. Senão vejamos.
‘Em
primeiro lugar, cumpre saber se a hipótese dos autos versa ou não sobre
loteamento clandestino em zona rural.
Os
conceitos de solo urbano e solo rural – usados na Lei de Parcelamento do Solo
Urbano, como sinônimos de imóvel urbano e imóvel rural) não se confundem com os
de zona urbana e zona rural. Enquanto os dois primeiros referem-se à destinação
de uso dada ao solo (ao imóvel), os dois últimos dizem respeito à localização
do imóvel (do solo), independentemente da finalidade com que é utilizado.
Imóvel
rural é “o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua
localização, perímetros urbanos, suburbanos ou rurais dos municípios, que se
destina à exploração extrativa, agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer
através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada”,
consoante as redações do artigo 4º da Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964 –
Estatuto da Terra – e do artigo 5º do Decreto nº 55.891, de 31 de março de
1965.
Dessa
forma, um imóvel rural (ou solo rural) pode estar localizado na zona urbana, na
zona de expansão urbana ou, ainda, na zona rural, porque o que vale é a
finalidade do seu uso.
Se
o solo/imóvel for rural, esteja ele situado em zona rural ou em zona urbana,
será sempre necessária a prévia audiência do INCRA, tão-somente para concordar
ou não com a alteração do uso do imóvel rural para uso como imóvel urbano.
Outrossim,
se o imóvel/solo rural estiver situado na zona urbana ou de expansão urbana, o
seu parcelamento para fins urbanos poderá ser permitido. No entanto, se estiver
situado na zona rural, o seu parcelamento com finalidade urbana deverá ser
vedado, a menos que, havendo interesse local, a Prefeitura altere o zoneamento
do local, onde se situa o imóvel, mediante lei municipal.
Mas,
pergunta-se: o que é loteamento clandestino?
Cumpre
destacar que, pelo menos, três etapas são necessárias para a implementação
lícita de um loteamento: a) administrativa, que se processa perante os órgãos públicos (aprovações e
licenças); b) a civil e registrária, caracterizada pelo ingresso do projeto de
loteamento e do contrato-padrão no ofício predial e c) a urbanística, consistente
na execução das obras de infra-estrutura.
Poucos
são os estímulos para quem pretende lotear e maneira rápida, a custos baixos,
com altos ganhos financeiros e total aproveitamento da gleba, razão pela qual
proprietários de terras têm contornado o comando da Lei 6.766/79, promovendo os
chamados loteamentos clandestinos.
Clandestino
não é, apenas, o loteamento feito às ocultas. É tanto aquele desconhecido
oficialmente pelo Poder Público, porque inexistente solicitação de aprovação,
quanto aquele que deriva do indeferimento do respectivo pedido, por não atender
as exigências legais. Em um ou em outro caso, sempre sem a chancela oficial,
ele é implantado fisicamente pelo loteador, com a abertura de ruas, demarcação
de quadras e lotes e com a edificação de casas pelos adquirentes. Além disso,
temos os loteamentos clandestinos, nas hipóteses em que a gleba não tenha
sofrido qualquer fragmentação, porque algumas vezes não são executados, embora
haja, segundo uma planta ou projeto, ocorrido a venda dos lotes. Nessa linha de
raciocínio, são clandestinos os loteamentos parcialmente executados ou
não-executados.
No
caso dos autos, os apelantes, na qualidade de proprietários da gleba de terra
de 41.791,531 metros quadrados, promoveram o parcelamento do solo, em frações
ideais, em total desacordo com a legislação vigente. Ressalte-se que os
próprios apelantes, na contestação, afirmaram que houve a alienação das frações
ideais do imóvel.
Nesse
diapasão, estamos diante de hipótese de loteamento clandestino.
O
loteamento denominado “Residencial Bocaina” não foi devidamente registrado no
Cartório de Registro de Imóveis dessa Comarca, o que inviabiliza a alienação
dos lotes que o integram.
Nos
estudos contemporâneos de Direito Urbanístico é firme a tendência de superar a
tradicional concepção de que haveria, nesse caso, simples exercício de
faculdade derivada do domínio, para qualificar a modificação ou a criação de
áreas urbanas como uma função pública, atribuída, essencialmente, ao Município.
De
acordo com o sistema instituído pela Lei 6.766/79 (especialmente, nos artigos
6º, 12, 18, "caput" e
inciso V), o parcelamento, para ser regular, deve percorrer várias etapas,
passando da fixação de diretrizes para a aprovação; desta, para o registro na
competente circunscrição imobiliária; e, por fim, para a execução das
pertinentes obras de infra-estrutura. Prestigiando essa formalidade, a
mencionada lei proíbe que, antes de registrado o parcelamento, sejam feitas
vendas e promessas de venda de lotes (art. 37) ou, de um modo geral, que o
parcelador faça reservas ou manifeste, em qualquer instrumento, intenção de
vendê-los, conduta que constitui crime qualificado contra a Administração
Pública (art. 50, I, e par. único, I).
Adverte
NARCISO ORLANDI NETO que “o registro do parcelamento tem inúmeros efeitos, mas
seus objetivos são bastante claros: destina-se, precipuamente, a proteger os
interesses dos futuros adquirentes dos lotes"[1].
Aliás,
a fase registrária é, propriamente, a ocasião
em que o
parcelamento ingressa no mundo jurídico. Antes da realização do
registro, a gleba permanece indivisa, não se podendo falar na
existência de lotes, o que só ocorre com a fragmentação do imóvel
originário, por ele efetivada[2].
O
preceito que determina a formalização do registro é de ordem pública, motivo
pelo qual sua vulneração importa grave ofensa à comunidade, a ponto de
configurar, em tese, delito contra a Administração Pública (art. 50, I, e par.
único, I), de natureza formal, caracterizado pela simples potencialidade de
dano, perigo esse abstrato e presumido pela lei com a mera prática da conduta
incriminada[3]
Na
espécie, não há registro do loteamento e, conseqüentemente, os apelantes não
poderiam ter realizado qualquer negócio jurídico que implicasse reserva ou
alienação dos lotes.
Registre-se
que o artigo 18, inciso V da Lei nº 6.766/79 estabelece que para o registro do
loteamento será necessária a apresentação do ato de aprovação, no qual constará
o termo de verificação pela Prefeitura da execução das obras exigidas pela
legislação municipal, que incluirão, no mínimo, a execução das vias de
circulação, demarcação dos lotes, quadras e logradouros e das obras de
escoamento das águas pluviais ou da aprovação de um cronograma, com a duração
máxima de dois anos.
O
artigo 4º da referida Lei estabelece que os loteamentos deverão atender, entre
outros requisitos, a implantação de equipamento urbano e comunitário. Já o
parágrafo único do artigo 5º estabelece que se consideram urbanos os
equipamentos públicos de abastecimento de água, serviços de esgotos, energia
elétrica, coletas de águas pluviais, rede telefônica e gás canalizado.
No caso, o
loteamento, por não contar com as obras de infra-estrutura, que há muito
deveriam ter sido concluídas, encontra-se irregular.
A
obrigação de realização das obras, na espécie, não foi cumprida no modo e no
tempo devidos e isso vem impedindo a fruição, pela comunidade, das vantagens
que poderia obter com a conclusão, completa e oportuna, das obras de
infra-estrutura.
Como é notório, os
bens de uso comum do povo destinam-se a servi-lo e, sendo adequados, é
suficiente que fiquem à sua disposição, para cumprir esse encargo. Ruas e
avenidas, trabalhos para contenção e escoamento de águas pluviais, redes de
esgoto e iluminação pública, espaços livres e áreas verdes, desde o instante em
que são entregues ao uso indiscriminado de todos, já estão cumprindo seu
destino natural, pois as utilidades que produzem lhes são
congênitas. Mas, ainda que repercutam no patrimônio de algumas delas, essas
vantagens, auferidas pela generalidade das pessoas, e, bem assim, suas
correlatas e eventuais ofensas, não são, propriamente, materiais. O conforto, o
sossego, a beleza, a segurança, a salubridade e a possibilidade de livre
trânsito, geradas por coisas desse gênero, pertencem, antes, à esfera dos
valores espirituais, integrando-se ao conceito de patrimônio social, de que
cogita a Constituição (art. 129, inciso III), onde o termo foi empregado em
significação ampla, abstraindo-se um caráter estritamente econômico[4].
É evidente que os
loteadores devem realizar todas as obras de infra-estrutura. Não há suporte
normativo para a recusa dessa obrigação, que decorre, de resto, de um postulado
lógico: os direitos nada valeriam se sua violação não sujeitasse o infrator ao
dever de repará-los.
Positivamente,
é de rigor a manutenção da decisão do
juízo monocrático.
3. Nestas
condições, o parecer é, pois, pelo improvimento do recurso de apelação, em toda
a sua extensão.
São Paulo, 21 de novembro de 2005.
MARIA FÁTIMA VAQUERO RAMALHO LEYSER
Procuradora de Justiça
[2] Sérgio A. Frazão do COUTO, Manual teórico e prático do parcelamento
urbano", Rio de Janeiro, Editora
Forense, 1981, p. 175.
[3] Ruy Rosado de Aguiar Júnior,
"Normas penais sobre o parcelamento do solo urbano" in Direito do Urbanismo - Uma Visão
Sócio-Jurídica, coordenação de Álvaro Pessoa, São Paulo, IBAM, 1981, pp.
212 e 214; Jorge Medeiros da SILVA, Direito
Penal Especial, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1981, p. 68;
Arnalzo RIZZARDO, Promessa de Compra e
Venda e Parcelamento do Solo Urbano, 2ª edição, São Paulo, Editora Revista
dos Tribunais, 1983, p. 170; RT 637/243).
[4]Hely Lopes MEIRELLES, Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação
Civil Pública, Mandado de Injunção, Habeas-Data", 12ª edição, São
Paulo, Editora Revista dos Tribunais, pp. 89-91; Yussef Said CAHALI, Dano e Indenização, São Paulo, Editora
Revista dos Tribunais, 1980, p. 7.
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