sexta-feira, 1 de março de 2013

MP SP - Parecer no 2o. Grau : LOTEAMENTO CLANDESTINO - Bragança Paulista





          Apelação Cível nº 421.824.4/5-00 – Comarca de Bragança Paulista
          Apelantes: Jelena Érika Maria Kibijan de Godoy e Outros
          Apelado: Ministério Público do Estado de São Paulo
  


          1.                                                 Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra Getúlio Florêncio de Godoy, Jelena Érika Maria Kibijan de Godoy, Daltro Vidal Brasiliense de Godoy, Gislene Virginia de Godoy e Aneli Ariani de Godoy, que promoveram um loteamento irregular, sob a denominação de “Residencial Bocaina”, pois não havia qualquer licença por parte dos órgãos competentes.

                                                              O ilustre Magistrado julgou a ação procedente para o fim de condenar os requeridos a promoverem a regularização do loteamento “Residencial Bocaina”, elaborando um projeto que obedeça a todas as leis pertinentes, o que abrange a incumbência de dedicar as áreas reservadas, adquirindo-as se não as possuírem, aprovando o referido projeto nos órgãos competentes, municipais e estaduais e registrando-o no Oficial de Registro de Imóveis, podendo, naturalmente, aproveitar a divisão atualmente estabelecida para preservar o direito dos adquirentes. Deverão, ainda, promover a infra-estrutura necessária. Além disso, concedeu-se o prazo de seis meses para o registro do projeto aprovado no Oficial de Registro de Imóveis, sob pena de responderem pela multa mensal de R$ 50.000,00, a ser depositada ao Fundo Estadual de Reparação de Interesses Difusos Lesados.

                                                              O Ministério Público ofereceu suas contra-razões, requerendo o não provimento do recurso.

                                                              Este é, em síntese, o relatório.

          2.                                                 O apelo deve ser improvido. Senão vejamos.

                                                              ‘Em primeiro lugar, cumpre saber se a hipótese dos autos versa ou não sobre loteamento clandestino em zona rural.

                                                              Os conceitos de solo urbano e solo rural – usados na Lei de Parcelamento do Solo Urbano, como sinônimos de imóvel urbano e imóvel rural) não se confundem com os de zona urbana e zona rural. Enquanto os dois primeiros referem-se à destinação de uso dada ao solo (ao imóvel), os dois últimos dizem respeito à localização do imóvel (do solo), independentemente da finalidade com que é utilizado.

                                                              Imóvel rural é “o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, perímetros urbanos, suburbanos ou rurais dos municípios, que se destina à exploração extrativa, agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada”, consoante as redações do artigo 4º da Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964 – Estatuto da Terra – e do artigo 5º do Decreto nº 55.891, de 31 de março de 1965.                        

                                                              Dessa forma, um imóvel rural (ou solo rural) pode estar localizado na zona urbana, na zona de expansão urbana ou, ainda, na zona rural, porque o que vale é a finalidade do seu uso.

                                                              Se o solo/imóvel for rural, esteja ele situado em zona rural ou em zona urbana, será sempre necessária a prévia audiência do INCRA, tão-somente para concordar ou não com a alteração do uso do imóvel rural para uso como imóvel urbano.

                                                              Outrossim, se o imóvel/solo rural estiver situado na zona urbana ou de expansão urbana, o seu parcelamento para fins urbanos poderá ser permitido. No entanto, se estiver situado na zona rural, o seu parcelamento com finalidade urbana deverá ser vedado, a menos que, havendo interesse local, a Prefeitura altere o zoneamento do local, onde se situa o imóvel, mediante lei municipal.
         
                                                              Mas, pergunta-se: o que é loteamento clandestino?

                                                              Cumpre destacar que, pelo menos, três etapas são necessárias para a implementação lícita de um loteamento: a) administrativa, que se processa  perante os órgãos públicos (aprovações e licenças); b) a civil e registrária, caracterizada pelo ingresso do projeto de loteamento e do contrato-padrão no ofício predial e c) a urbanística, consistente na execução das obras de infra-estrutura.

                                                              Poucos são os estímulos para quem pretende lotear e maneira rápida, a custos baixos, com altos ganhos financeiros e total aproveitamento da gleba, razão pela qual proprietários de terras têm contornado o comando da Lei 6.766/79, promovendo os chamados loteamentos clandestinos.

                                                              Clandestino não é, apenas, o loteamento feito às ocultas. É tanto aquele desconhecido oficialmente pelo Poder Público, porque inexistente solicitação de aprovação, quanto aquele que deriva do indeferimento do respectivo pedido, por não atender as exigências legais. Em um ou em outro caso, sempre sem a chancela oficial, ele é implantado fisicamente pelo loteador, com a abertura de ruas, demarcação de quadras e lotes e com a edificação de casas pelos adquirentes. Além disso, temos os loteamentos clandestinos, nas hipóteses em que a gleba não tenha sofrido qualquer fragmentação, porque algumas vezes não são executados, embora haja, segundo uma planta ou projeto, ocorrido a venda dos lotes. Nessa linha de raciocínio, são clandestinos os loteamentos parcialmente executados ou não-executados.

                                                              No caso dos autos, os apelantes, na qualidade de proprietários da gleba de terra de 41.791,531 metros quadrados, promoveram o parcelamento do solo, em frações ideais, em total desacordo com a legislação vigente. Ressalte-se que os próprios apelantes, na contestação, afirmaram que houve a alienação das frações ideais do imóvel.

                                                              Nesse diapasão, estamos diante de hipótese de loteamento clandestino.
         
                                                    O loteamento denominado “Residencial Bocaina” não foi devidamente registrado no Cartório de Registro de Imóveis dessa Comarca, o que inviabiliza a alienação dos lotes que o integram.

                                                    Nos estudos contemporâneos de Direito Urbanístico é firme a tendência de superar a tradicional concepção de que haveria, nesse caso, simples exercício de faculdade derivada do domínio, para qualificar a modificação ou a criação de áreas urbanas como uma função pública, atribuída, essencialmente, ao Município.

                                                    De acordo com o sistema instituído pela Lei 6.766/79 (especialmente, nos artigos 6º, 12, 18, "caput" e inciso V), o parcelamento, para ser regular, deve percorrer várias etapas, passando da fixação de diretrizes para a aprovação; desta, para o registro na competente circunscrição imobiliária; e, por fim, para a execução das pertinentes obras de infra-estrutura. Prestigiando essa formalidade, a mencionada lei proíbe que, antes de registrado o parcelamento, sejam feitas vendas e promessas de venda de lotes (art. 37) ou, de um modo geral, que o parcelador faça reservas ou manifeste, em qualquer instrumento, intenção de vendê-los, conduta que constitui crime qualificado contra a Administração Pública (art. 50, I, e par. único, I).

                                                    Adverte NARCISO ORLANDI NETO que “o registro do parcelamento tem inúmeros efeitos, mas seus objetivos são bastante claros: destina-se, precipuamente, a proteger os interesses dos futuros adquirentes dos lotes"[1].

                                                    Aliás, a fase registrária é, propriamente, a ocasião  em  que  o  parcelamento  ingressa  no mundo jurídico. Antes da realização do registro, a gleba permanece indivisa, não se podendo falar  na  existência de lotes, o que só ocorre com a fragmentação do imóvel originário, por ele efetivada[2].

                                                    O preceito que determina a formalização do registro é de ordem pública, motivo pelo qual sua vulneração importa grave ofensa à comunidade, a ponto de configurar, em tese, delito contra a Administração Pública (art. 50, I, e par. único, I), de natureza formal, caracterizado pela simples potencialidade de dano, perigo esse abstrato e presumido pela lei com a mera prática da conduta incriminada[3]
                                                   
                                                    Na espécie, não há registro do loteamento e, conseqüentemente, os apelantes não poderiam ter realizado qualquer negócio jurídico que implicasse reserva ou alienação dos lotes.

                                                    Registre-se que o artigo 18, inciso V da Lei nº 6.766/79 estabelece que para o registro do loteamento será necessária a apresentação do ato de aprovação, no qual constará o termo de verificação pela Prefeitura da execução das obras exigidas pela legislação municipal, que incluirão, no mínimo, a execução das vias de circulação, demarcação dos lotes, quadras e logradouros e das obras de escoamento das águas pluviais ou da aprovação de um cronograma, com a duração máxima de dois anos.

                                                    O artigo 4º da referida Lei estabelece que os loteamentos deverão atender, entre outros requisitos, a implantação de equipamento urbano e comunitário. Já o parágrafo único do artigo 5º estabelece que se consideram urbanos os equipamentos públicos de abastecimento de água, serviços de esgotos, energia elétrica, coletas de águas pluviais, rede telefônica e gás canalizado.

                                          No caso, o loteamento, por não contar com as obras de infra-estrutura, que há muito deveriam ter sido concluídas, encontra-se irregular.

                                                    A obrigação de realização das obras, na espécie, não foi cumprida no modo e no tempo devidos e isso vem impedindo a fruição, pela comunidade, das vantagens que poderia obter com a conclusão, completa e oportuna, das obras de infra-estrutura.

                                          Como é notório, os bens de uso comum do povo destinam-se a servi-lo e, sendo adequados, é suficiente que fiquem à sua disposição, para cumprir esse encargo. Ruas e avenidas, trabalhos para contenção e escoamento de águas pluviais, redes de esgoto e iluminação pública, espaços livres e áreas verdes, desde o instante em que são entregues ao uso indiscriminado de todos, já estão cumprindo seu destino natural,  pois  as utilidades que produzem lhes são congênitas. Mas, ainda que repercutam no patrimônio de algumas delas, essas vantagens, auferidas pela generalidade das pessoas, e, bem assim, suas correlatas e eventuais ofensas, não são, propriamente, materiais. O conforto, o sossego, a beleza, a segurança, a salubridade e a possibilidade de livre trânsito, geradas por coisas desse gênero, pertencem, antes, à esfera dos valores espirituais, integrando-se ao conceito de patrimônio social, de que cogita a Constituição (art. 129, inciso III), onde o termo foi empregado em significação ampla, abstraindo-se um caráter estritamente econômico[4].

                                          É evidente que os loteadores devem realizar todas as obras de infra-estrutura. Não há suporte normativo para a recusa dessa obrigação, que decorre, de resto, de um postulado lógico: os direitos nada valeriam se sua violação não sujeitasse o infrator ao dever de repará-los.
                                         
                                                    Positivamente, é de rigor a manutenção da  decisão do juízo monocrático.

          3.                                                 Nestas condições, o parecer é, pois, pelo improvimento do recurso de apelação, em toda a sua extensão.
                                                               São Paulo, 21 de novembro de 2005.


                                                 MARIA FÁTIMA VAQUERO RAMALHO LEYSER
                                                                     Procuradora de Justiça


[1] “Os loteamentos irregulares e sua regularização” in Revista do Advogado nº 18, p. 8.
[2] Sérgio A. Frazão do COUTO, Manual teórico e prático do parcelamento urbano", Rio de Janeiro, Editora  Forense, 1981, p. 175.
[3] Ruy Rosado de Aguiar Júnior, "Normas penais sobre o parcelamento do solo urbano" in Direito do Urbanismo - Uma Visão Sócio-Jurídica, coordenação de Álvaro Pessoa, São Paulo, IBAM, 1981, pp. 212 e 214; Jorge Medeiros da SILVA, Direito Penal Especial, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1981, p. 68; Arnalzo RIZZARDO, Promessa de Compra e Venda e Parcelamento do Solo Urbano, 2ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1983, p. 170; RT 637/243).

[4]Hely Lopes MEIRELLES, Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, Habeas-Data", 12ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, pp. 89-91; Yussef Said CAHALI, Dano e Indenização, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1980, p. 7.

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