terça-feira, 6 de outubro de 2015

MP SP EM AÇÃO : MUNICIPIO NÃO PODE ABDICAR DE SUA MISSÃO CONSTITUCIONAL , NEM DELEGAR PODERES E DEVERES PRIVATIVOS DE ESTADO A PARTICULARES ; PARECER EM ACP Autos nº 1004012-18.2014.8.26.0077 - BIRIGUI SP


MUNICIPIO NÃO PODE ABDICAR DE SUA MISSÃO CONSTITUCIONAL , NEM DELEGAR PODERES E DEVERES PRIVATIVOS DE ESTADO A PARTICULARES

Esse decreto contém clara violação ao princípio constitucional da impessoalidade ou princípio da isonomia, a que os Municípios devem render reverência (arts. 111 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo; art. 37, caput, Constituição Federal).
Comporta acolhimento, assim, a sua declaração de nulidade e, também, o reconhecimento incidental da inconstitucionalidade da lei municipal que lhe dá suporte, como já se decidiu em situação semelhante.1


Se não é permitido a um Poder delegar competência ou função a outro, não pode o Município abdicar do monopólio de seu poder-dever de ordenar e controlar as ações dos particulares na cidade, e, mais ainda, no interior de loteamentos ou bairros consolidados. É sua a exclusiva competência ordenar as funções sociais da cidade em prol do bem-estar de seus habitantes (art. 30, VIII c.c. art. 182, CF).
Deste modo, com a anulação do decreto municipal que permitiu o uso das áreas públicas do loteamento, assim como com o reconhecimento incidental da inconstitucionalidade da lei local, o Município será compelido a exercer os atos de poder de polícia (controle), reordenando o uso das áreas públicas internas do bairro fechado e exercer a política das edificações (atos de gestão e ordenação urbanística e territorial).

Agradecemos ao Dr Jose Carlos de Freitas, Procurador do MP SP pela autorização de publicação

Autos nº 1004012-18.2014.8.26.0077 - 
Apelação - Foro de Birigui - 1ª Vara Cível

Parcelamento do Solo – loteamento fechado 
 
10ª Câmara de Direito Público - Relator Torres de Carvalho 
 
Apelante: Ministério Público Do Estado De São Paulo 
 
Apelados: Associação dos Proprietários da "Villa do Chafariz" e Prefeitura Municipal de Birigui 
 

PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA

Egrégio Tribunal.

Colenda Câmara.

A ação é civil pública, em cuja sede foi proferida a sentença de fls. 363/376, ora atacada por recurso de apelação que, resumidamente, julgou improcedente a demanda que versa sobre loteamento fechado na Cidade de Birigui, ajuizada contra a Associação dos Proprietários da “Villa do Chafariz” e o Município de Birigui, na qual o Parquet pleiteia a anulação, com efeito ex tunc, do Decreto nº 3.179/2000, ato normativo que regulamentou a Lei Municipal nº 3.786/2000; a condenação da associação ré a se abster de impor qualquer tipo de obrigação, inclusive taxas associativas e restrições ao direito de construir, a moradores e proprietários de lotes que não são associados, nem manifestaram interesse em se associar; a condenação da associação ré a se abster de obstaculizar a entrada de terceiros no loteamento, devendo as cancelas das guaritas de segurança permanecerem abertas.
Recorre o Parquet postulando a reforma para decretar a procedência da ação, nos termos em que foi proposta.
O recurso é tempestivo (fls. 386, 387). Oferecidas as contrarrazões nas fls. 452/472.
Este parecer é pelo provimento integral do recurso, ratificando toda a matéria prequestionada, e com pedido de aplicação do art. 461, § 5º do CPC (retirada das cancelas). Além dos convincentes argumentos do recorrente, acrescentam-se os que seguem.
O tema não é novidade nesse Tribunal: a legalidade ou não dos loteamentos fechados e das obrigações impostas pelas associações de moradores aos proprietários de lotes, não associados; inconstitucionalidade das leis municipais que os preveem.
As partes e o juízo bem o retrataram.
Pretende o Parquet que o decreto específico que permitiu o uso exclusivo aos moradores seja anulado, com o reconhecimento incidental da inconstitucionalidade da lei que lhe antecedeu, assim como a imposição de obrigação à associação de não obstar o livre acesso de terceiros ao loteamento, e, também, não impor qualquer tipo de obrigação ou restrição aos moradores e proprietários de lotes não associados.
O autor deixa claro que não pretende extinguir a forma associativa, que pode continuar existindo e prestando serviços aos moradores, porém sem obrigar os não associados a pagar por serviços que não aderiram (fl. 38).

ANULAÇÃO DO DECRETO E RECONHECIMENTO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI MUNICIPAL

O Decreto Municipal nº 3.179/2000 veiculou a permissão de uso das áreas públicas do loteamento residencial Villa do Chafariz com exclusividade aos “futuros adquirentes”. É diploma que não regra situações genéricas e abstratas para pessoas indefinidas e fatos semelhantes, mas, sim, decreto de efeitos concretos (aplicável uma única vez, exaurindo seu objeto), de permissão de uso exclusivo e excludente das áreas públicas de um loteamento identificado, privando qualquer outra pessoa do povo de sua fruição.
Esse decreto contém clara violação ao princípio constitucional da impessoalidade ou princípio da isonomia, a que os Municípios devem render reverência (arts. 111 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo; art. 37, caput, Constituição Federal).
Comporta acolhimento, assim, a sua declaração de nulidade e, também, o reconhecimento incidental da inconstitucionalidade da lei municipal que lhe dá suporte, como já se decidiu em situação semelhante.1
A Lei Municipal nº 3.786/2000, com a modificação dada pelas LM 4.339/2004 e 4.047/2002 (fls. 78/86) e o Decreto Municipal nº 3.179/2000 (fls. 151/152) são inconstitucionais e ofendem as ordens jurídica e urbanística estabelecidas.
Os Municípios não podem autorizar essa forma de loteamento condominial. Lei municipal que preveja ou regule sua implantação contamina o ato de aprovação de flagrante ilegalidade, porque o Município não tem competência legislativa em matéria de condomínio.2 Nem, assim, para criar uma terceira espécie de parcelamento do solo, diversa daquelas previstas na Lei 6.766/79 -- loteamento ou desmembramento (art. 2º) -- pois a tanto não está autorizado pelo art. 30, VIII, da Constituição Federal, já que a União, no exercício de sua competência para legislar sobre normas de Direito Civil, Ambiental, Registros Públicos e Urbanístico (art. 22, I, XXV c.c. art. 24, I e VI CF), editou a lei geral de parcelamento do solo para fins urbanos, a Lei 6.766/79, para regrar essas formas de ocupação do solo de qualificação urbana.
Essa lei federal contém normas de direito civil (arts. 25 a 36; 37; 38, §§ 1º e 4º; 39; 45; 46; 47), de registro imobiliário (arts. 18 a 24), ambiental (art. 3º), penal (arts. 50 a 52) e urbanístico (arts. 4º a 17).
As normas civis, de edição exclusiva da União (art. 22, I, CF), regram, por exemplo, o direito de propriedade, na sua substância e transformações dominiais (a translação da propriedade dos lotes, seu modo e forma de aquisição e alienação), o trespasse de áreas privadas para o domínio do município (com o registro do loteamento), as cláusulas contratuais que protegem os adquirentes dos lotes (limites para a multa moratória, registro do compromisso de compra e venda, outorga da escritura, devolução de quantias pagas etc.).
Já as normas urbanísticas, notadamente as editadas pelo Município, dizem respeito à ordenação do território, tendo em vista o traçado urbano, o sistema viário, as áreas livres, a construção urbana, a estética da cidade, expressas em limitações urbanísticas que organizam os espaços habitáveis, propiciando ao homem melhores condições de vida em comunidade, regrando o uso da propriedade.
Há espaço para as cláusulas convencionais criadas pelo loteador e aceitas pelo Município quando aprova o projeto de loteamento, que vinculam os adquirentes dos lotes, quando constam do memorial descritivo do loteamento apresentado à Prefeitura e do contrato-padrão, que são arquivados no Registro de Imóveis para a devida publicidade (arts. 9º, § 2º, II, 18, VI, 26, VII). São aquelas que, por exemplo, proíbem ao proprietário do lote a construção de muros frontais ou as edificações plurifamiliares (prédios de apartamentos), obrigam a construir piscinas, obedecer a recuos maiores, arborizar o passeio etc.
O loteamento é modalidade de urbanificação, forma de ordenação urbanística do solo ou “atividade deliberada de beneficiamento ou rebeneficiamento do solo para fins urbanos, quer criando áreas urbanas novas pelo beneficiamento do solo ainda não urbanificado, quer modificando solo já urbanificado”. Distingue-se da urbanização, que é “um fenômeno espontâneo de crescimento das aglomerações urbanas em relação com a população rural”.3
Conquanto essa atividade urbanística de lotear seja de tradicional iniciativa de particulares, proprietários de glebas indivisas, ainda assim, como anotou o ilustre e saudoso Procurador de Justiça de São Paulo, JOSÉ JESUS CAZETTA JR., nos estudos contemporâneos de Direito Urbanístico é firme a tendência de superar a tradicional concepção de que haveria, nesse caso, simples exercício de faculdade derivada do domínio, para qualificar a modificação ou a criação de áreas urbanas como uma função pública, atribuída, essencialmente, ao Município. Por isso se sustenta, na doutrina, que o particular, quando realiza um loteamento urbano e nele executa obras e serviços de infra-estrutura, está, em verdade, "em nome próprio, no interesse próprio e às próprias custas e riscos (...), exercendo uma atividade que pertence ao poder público municipal, qual seja a de oferecer condições de habitabilidade à população urbana" (cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Direito Urbanístico Brasileiro", Ed. Revista dos Tribunais, 1981, págs. 376 e 562-563; em sentido semelhante: EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA e LUCIANO PAREJO ALFONSO, "Lecciones de Derecho Urbanistico", Editorial Civitas, Madrid, 1981, 2ª ed., págs. 113/115 e 172/174; REGINA HELENA COSTA, "Princípios de Direito Urbanístico na Constituição de 1988", "in" "Temas de Direito Urbanístico - 2", Editora Revista dos Tribunais, 1991, págs. 118/127; EURICO DE ANDRADE AZEVEDO, "O Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano", in "Revista do Advogado", nº 18, julho/85, págs. 36/37). 4
Loteamento é modalidade de parcelamento do solo urbano que obedece a lei geral, a Lei 6.766/79, que nunca tratou da figura do loteamento fechado ou loteamento em condomínio, mas, somente, da figura do loteamento e do desmembramento, até porque a expressão loteamento fechado encerra contradição na expressão (quando se loteia criam-se espaços privados destinados a edificação -- os lotes -- e espaços abertos, de uso comum do povo, dentre ruas, praças, áreas verdes e institucionais etc.).
Os adjetivos “condomínio” e “fechado” não espelham os predicados dessa forma de parcelamento do solo, como prevista na Lei 6.766/79. Na concepção legal do loteamento tradicional estão sempre presentes as ideias de individualidade dominial das novas unidades (dos lotes), de criação de espaços para áreas públicas e de inovação do sistema viário, perdendo a gleba a sua indivisibilidade, dando azo ao surgimento de áreas de uso comum do povo (arts. 4º, I; 7º, II e III; 9º, § 2º, III e 22 da Lei 6766/79, c.c. art. 99, I, Código Civil).
A doutrina especializada não reconhece essa modalidade.
Para JOSÉ AFONSO DA SILVA, “os tais “loteamentos fechados” juridicamente não existem; não há legislação que os ampare, constituem uma distorção e uma deformação de duas instituições jurídicas: do aproveitamento condominial de espaço e do loteamento ou do desmembramento. É mais uma técnica de especulação imobiliária, sem as limitações, as obrigações e os ônus que o Direito Urbanístico impõe aos arruadores e loteadores do solo”. 5
EROS ROBERTO GRAU também anotou, na proliferação dos “loteamentos em condomínio”, uma indisfarçável forma de escapar às exigências da Lei 6766/79, na medida em que sua instituição não se dá em razão de iniciativa de incorporação imobiliária regida pela Lei 4.591/64, porque o empreendedor não assume a obrigação de neles edificar as casas, como preceitua o art. 8º desse diploma. E arremata o jurista que as chamadas áreas de passagem comum desses condomínios fechadosnão podem ser cercadas ou bloquedas, de modo que impeça o seu uso normal por qualquer pessoa, evitando-se o acesso a quem quer que seja ao ‘condomínio’ ”. 6
Também DIÓGENES GASPARINI, externando similar entendimento ao analisar a criação dos chamados “loteamentos privé” ou “integrados” ou “especiais” ou “integrais” ou “fechados” ou “em condomínio”, salienta a ilegalidade do ato da Administração que os autoriza: “Não se subsumindo tais “loteamentos” ao regime do Código Civil e não se submetendo aos ditames da Lei de Condomínio, não se tem como legalizá-los. O nosso ordenamento jurídico, pelo menos até o momento, não os acolhe e a atividade administrativa para autorizá-los não se legitima, dado que não está a presidi-la o princípio da legalidade”.7
Não há margem, assim, para a criação de uma terceira espécie de parcelamento do solo pelos municípios -- o loteamento fechado -- uma figura transgênica formada a partir do material genético da Lei 6.766/79 (parcelamento do solo) com a Lei 4.591/64 (condomínio edilício), portanto, com carga genética de corpos bem diferentes e incompatíveis, daí tanta rejeição que tem provocado no tecido urbano e na sociedade contemporânea, a partir do comando verticalmente superior que propõe, como objetivo fundamental da República, a redução das desigualdades sociais e a erradicação da marginalização (CF, art. 3º, III) e, como garantias fundamentais da pessoa humana, insculpidas na Carta Magna e de aplicação imediata (art. 5º, caput, XV, XVI e § 1º), o direito de circular -- ir e vir (viajar e migrar) -- e também o de permanecer (para exercer o direito de reunião e de estacionar), pois “em matéria de bens terrestres, de uso comum, no Brasil, a utilização de quisque de populo compreende o trânsito e o estacionamento, podendo este ser momentâneo - parar - e prolongado - estacionar...”8

BENS PÚBLICOS DE LOTEAMENTOS – IMPOSSIBILIDADE DE USO EXCLUSIVO E EXCLUDENTE

A colocação de cancelas na entrada do loteamento inibe a entrada de pessoas não proprietárias e não moradoras. Mais que isso, subtrai de qualquer pessoa do povo, moradora ou não da cidade, a fruição dos bens de uso comum, promovendo violação aos seus direitos de locomoção e de reunião. Sua remoção é medida de rigor, conforme é requerido ao final deste tópico, pois não é suficiente, para a associação se abster de obstaculizar a entrada de terceiros no loteamento, que as cancelas permaneçam abertas. Não haverá controle suficiente para isso.
As áreas definidas em projeto de lotea­mento, como sempre foi de nossa tradição legislativa, transformam-se em bens de uso co­mum do povo quando da ins­crição ou registro de um par­celamento do solo no ofício pre­dial (art. 3º, Decreto-lei 58/37; art. 4º, De­creto-lei 271/67; art. 22, Lei 6.766/79), e passam a ser inalienáveis e imprescrití­veis por natu­reza (arts. 99, I, 100 e 102 do Có­digo Ci­vil; art. 183, § 3º, Cons­tituição Federal).
Os bens de uso co­mum do povo pertencem ao domínio emi­nente do Estado (lato sensu), que submete to­das as coisas de seu ter­ritório à sua vontade, como uma das mani­festações de So­berania in­terna, mas seu titu­lar é o povo. Não constitui um direito de pro­priedade ou do­mínio patri­monial de que o Estado possa dispor, segundo as normas de di­reito civil. O Estado é gestor desses bens e, assim, tem o dever de sua vigi­lância, tu­tela, fisca­lização e superintendência para o uso pú­blico9. Afirma-se que "o domí­nio emi­nente é um poder su­jeito ao direito; não é um poder ar­bitrário".10
Sua fruição é cole­tiva, "os usuá­rios são anôni­mos, in­determinados, e os bens utiliza­dos o são por todos os mem­bros da coletivi­dade - uti universi - ra­zão pela qual nin­guém tem direito ao uso exclu­sivo ou a privi­légios na utili­zação do bem: o direito de cada indivíduo li­mita-se à igual­dade com os demais na fruição do bem ou no su­portar os ônus dele resultantes".11
Aliás, sobre a utilização desses bens, sustentamos as razões que inviabilizam o uso exclusivo de logradouros dos parcelamentos do solo por moradores para a formação dos loteamentos fechados.12
Enfim, são bens predispostos ao inte­resse co­letivo e que desfrutam de especial proteção para que sua finali­dade ur­banística não seja desvirtuada por ação do Estado ou de ter­ceiros (v.g. esbu­lho), pois qua­lificam-se pela:
a) inalienabilidade peculiar (art. 3º, De­creto-lei 58/37: vias de comuni­cação e es­paços li­vres de loteamen­tos/arruamentos);
b) indisponibilidade e inalte­rabilidade de seu fim pelo loteador (art. 17, Lei 6.766/79: espaços li­vres, vias e praças, áreas institucionais)13 ou pelo Poder Pú­blico (art. 180, VII, Consti­tuição do Es­tado de São Paulo: áreas verdes e ins­titucionais).
Bem por isso, já se reconheceu a impossibili­dade de desafe­tação desses bens,14 ainda que seja para fins de educação, como a cons­trução de escola pública municipal,15 posto que são ina­lienáveis a qual­quer título. 16
O Tribunal de Jus­tiça de São Paulo acen­tuou a impossibi­lidade de concessão de di­reito real de uso so­bre áreas verdes e institucionais de lo­teamento, com base no princípio básico e protetivo do art. 180, VII da Cons­tituição Esta­dual, analisando, inclusive, casos da Comarca de Birigui.17
A prática de produzir loteamentos fechados é sustentada por alguns autores como lícita,18 sendo frequente o argumento de que o Município pode viabilizá-la pelo instituto da concessão de direito real de uso das áreas públicas, previsto no art. 7º do Decreto-lei 271, de 28/02/67,19 mas o caso dos autos não lhe rendeu reverência. Não se estabeleceu a concessão de direito real de uso, mas uma permissão de uso, portanto, ato unilateral, precário, discricionário, revogável unilateralmente, que dispensa até autorização legislativa, por não ser ato de concessão de uso (contratual).
Na certidão imobiliária do registro do loteamento não consta a concessão de uso (fls. 165/167), e, portanto, na dicção do diploma legal que supostamente daria suporte ao loteamento fechado, não foi obedecida formalidade legal que conferisse o título de direito real (Decreto-lei 271/67, art. 7º, parágrafo 1º c.c. art. 167, II, 40, Lei 6.015/73 c.c. art. 1225, XII, Código Civil), sendo sem efeito a permissão de uso operada pelo Decreto Municipal no 3.179/2000, aos olhos da legislação federal que rege a espécie e dos adeptos dessa figura transgênica.
Todavia, essa peculiar fruição de imóvel público (concessão de direito real de uso) – por ter caráter contratual (bilateral, sinalagmático, com obrigações recíprocas) -- só pode ser conferida para os bens dominicais, sendo incompatível para os bens de uso comum ou especial, enquanto destinados aos fins precípuos.20 Estes últimos reclamariam prévia desafetação para a concessão exclusiva do uso, porque a utilização das vias públicas (bens de uso comum), por exemplo, não é uma mera possibilidade, mas um poder legal exercitável erga omnes, não podendo a Administração impedir o trânsito de pessoas de maneira estável, a menos que desafete a via.21
A permissão de uso é categoria de Direito Administrativo que melhor se aplica aos bens de uso comum do povo.22 Qualquer bem público admite a permissão de uso especial, desde que a utilização seja também de interesse da coletividade que irá fruir certas vantagens desse uso, como acontece na instalação de bancas de jornais e de serviços de bar nas calçadas (colocação de mesas, cadeiras e toldos), de feiras livres nas ruas, vestiários em praias, no estacionamento de táxis nas vias públicas etc. Todos os demais do povo podem usufruir dos serviços e produtos dos permissionários estabelecidos nos bens públicos, nessas condições.
Porém, o instituto da permissão de uso, no caso do loteamento fechado dos autos, é utilizado com finalidade excludente da fruição das áreas públicas pelos demais comuns do povo, sabendo-se que as limitações ao direito de locomoção no território nacional só são possíveis em tempo de guerra, que, a seu turno, deve ser declarada pela União, por ato do Presidente da República e com autorização do Congresso Nacional, ou nas situações de estado de sítio ou de defesa (art. 21, II e VI; 49, II; 84, XIX e XX; 136 e 137 CF), e “desde que não elimine a liberdade como instituição”.23 É inconstitucional lei que, em tempo de paz, sob o argumento de disciplinar o uso privativo de bens públicos de uso comum do povo para moradores de loteamento urbano fechado, estabeleça ou faculte limitações ao direito de locomoção e de reunião no território nacional (art. 5º, XV e XVI, CF).
Nesse sentido, a retirada das cancelas é medida de rigor e visa assegurar o resultado prático equivalente ao do adimplemento, posto que o juiz pode determinar a remoção de coisas e desfazimento de obras (art. 461, § 5º, CPC).24
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA

As áreas cedidas pelo município no caso, mediante permissão de uso (fls. 293/294), compreendem dois sistemas de lazer e uma área institucional do loteamento “Villa do Chafariz” (fls. 75/77, 190).
O ato de permissão de uso operado pelo decreto municipal não transmudou a natureza dessas áreas, que ingressaram no patrimônio municipal por força de lei federal com o registro do loteamento (art. 17 e 22 da Lei 6.766/79; fls. 165/167), na categoria de bens de uso comum do povo (art. 99, I, Código Civil). Continuam afetadas como bens de uso comum do povo, porém cedidas a uma associação formada para administrar o loteamento, para o uso privativo dos seus moradores e proprietários.
Subsiste, assim, o interesse da coletividade em usufruir desses espaços públicos, sendo ilegal e inconstitucional a entrega desses bens ao deleite exclusivo de um grupo privilegiado de moradores do loteamento, ainda que embasado em lei local, que é, como visto, inconstitucional. Esses bens fazem parte da cidade sustentável (art. 2º, I, IV, V, da Lei 10.257/01).
Numa acepção de Direito Urbanístico, exis­tem bens afetados a cum­prir específi­cas funções so­ciais na ci­dade (habitação, tra­balho, circulação e recreação).
Assim, as vias urbanas visam à circulação de veí­culos automotores, bicicletas, pedestres e semoventes. As praças, jardins, par­ques e áreas verdes destinam-se à ornamentação urbana (fim paisagístico e estético), têm função hi­giênica, de de­fesa e recuperação do meio ambiente, atendem à circulação, à re­creação e ao lazer.
As chamadas áreas institu­cionais (em que se incluem os espaços li­vres: JTJ-LEX 154/269), são afeta­das para compor­tar equipa­mentos co­munitários de educação, cul­tura, saúde, la­zer e simi­lares, todos para o uso incondicional da população de uma cidade.
HELY LOPES MEIRELLES identifica os espaços li­vres e áreas verdes nos lotea­mentos como limitações do tra­çado urbano voltadas à sa­lubridade da cidade25. PAULO AFFONSO LEME MACHADO acentua nas praças e espaços livres de loteamentos seu caráter sa­nitário, como elemento de di­reito ur­banístico e ins­trumento de proteção à saúde26 e JOSÉ AFONSO DA SILVA lembra que elas se prestam a exercitar o direito de reu­nião (art. 5º, XVI, CF), para fins re­ligiosos, cívicos, políticos e recreati­vos.27
O Superior Tribunal de Justiça estabeleceu a latitude do art. 17 da Lei 6.766/79, que também vincula o Município, conjugando a interpretação dos artigos 4º, 22 e 28 da mesma lei, para concluir que os bens de uso comum do povo de loteamentos têm uma função social para a população e o município deve respeitar essa afetação:

Começo por analisar a pretensa violação do art. 17 da lei n. 6.766/79. Afasto, desde logo, a possibilidade de considerar que o ato administrativo que desafetou a área destinada a espaços verdes e praças públicas para a transformar num bairro de casas populares tenha natureza discricionária e, portanto, não seja passível do judicial review. O ato se acha sujeito a controle jurisdicional, pois, tratando-se de ato administrativo normativo, sofre, no mínimo, as restrições impostas pelas leis estaduais e federais, haja vista que a competência sobre a matéria é concorrente (art. 24, I, 30, I, II e VIII, e 182 da Constituição Federal). (...)
O art. 17 não pode ser compreendido isoladamente. Ao contrário, impõe-se uma interpretação sistemática com os arts. 4º, 22 e 28 do mesmo diploma. (...)
Essa estatuição pretendeu, sem dúvida, vedar o poder de disponibilidade do incorporador sobre essas áreas. Coloca-as, portanto, sobre a tutela da Administração municipal de forma a garantir que não terão destinação diversa. Este parece ser o espírito da lei. De outra forma, estaria a norma legalizando uma desapropriação indireta ou, pior, permitindo o confisco por parte do poder público. Por outro lado, visa, também, a aumentar o patrimônio comunitário, pois esta é a utilidade e função social dos bens públicos de uso comum do povo, a de servirem os interesses da comunidade.
Essa tese é reforçada por análise teleológica do art. 17 com o art. 4º do mesmo diploma legal. (...)
Esse dispositivo destaca os pressupostos mínimos do loteamento relativamente às áreas de uso comum, cuja fiscalização depende da municipalidade. Exige, portanto, que o loteador destaque áreas mínimas, tendo em vista a comodidade da população, a saúde e a segurança da comunidade. Portanto, embora a norma se dirija ao loteador, parece-me, mais uma vez, que a idéia que lhe é subjacente é a de proteger o interesse dos administrados, outorgando ao poder público essa tutela.
Existe, em relação a esses bens, uma espécie de separação jurídica entre o sujeito de direito da propriedade, o Município, e o seu objeto, a comunidade. Assim, embora a norma jurídica em apreço se dirija ao loteador, retirando-lhe de forma expressa o poder de disponibilidade sobre as praças, ruas e áreas de uso comum, a razão de ser da norma, isto é, o seu espírito, cria limitações à atuação do Município, pois a Administração que fiscaliza não pode violar a norma.
Como salientei, o objetivo da norma jurídica é vedar ao incorporador a alteração das áreas destinadas à comunidade. Portanto, não faz sentido, exceto em casos especialíssimos, possibilitar à Administração a fazê-lo. No caso concreto, as áreas foram postas sob a tutela da administração municipal, não com o propósito de confisco, mas como forma de salvaguardar o interesse dos administrados, em face de possíveis interesses especulativos dos incorporadores. Ademais, a importância do patrimônio público deve ser aferida em razão da importância da sua destinação. Assim, os bens de uso comum do povo possuem função ut universi. Constituem um patrimônio social comunitário, um acervo colocado à disposição de todos. Nesse sentido, a desafetação desse patrimônio prejudicaria toda uma comunidade de pessoas, indeterminadas e indefinidas, diminuindo a qualidade de vida do grupo. Dessarte, existe uma espécie de hierarquia de bens públicos, consolidada não em face do seu valor monetário, mas segundo a relação destes bens com a comunidade. Por isso, não me parece razoável que a própria Administração diminua sensivelmente o patrimônio social da comunidade. Prática, aliás, vedada por lei, pois o art. 4º impõe áreas mínimas para os espaços de uso comum. Incorre em falácia pensar que a Administração onipotentemente possa fazer, sob a capa da discricionariedade, atos vedados ao particular, se a própria lei impõe a tutela desses interesses”. (REsp 28.058 – SP, 2ª Turma do STJ, Min. Adhemar Maciel, j. 13.10.1998, Dj 18.12.1998) (original sem negrito)

Noutra decisão mais recente do Superior Tribunal de Justiça, da lavra do Ministro Herman Benjamin, foram indicadas, com precisão, as funções desses bens públicos:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRAÇAS, JARDINS E PARQUES PÚBLICOS. DIREITO À CIDADE SUSTENTÁVEL. ART. 2º, INCISOS I E IV, DA LEI 10.257/01 (ESTATUTO DA CIDADE). DOAÇÃO DE BEM IMÓVEL MUNICIPAL DE USO COMUM À UNIÃO PARA CONSTRUÇÃO DE AGÊNCIA DO INSS. DESAFETAÇÃO. COMPETÊNCIA. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 150/STJ. EXEGESE DE NORMAS LOCAIS (LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE ESTEIO/RS).
1. O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul ajuizou Ação Civil Pública contra o Município de Esteio, em vista da desafetação de área de uso comum do povo (praça) para a categoria de bem dominical, nos termos da Lei municipal 4.222/2006. Esta alteração de status jurídico viabilizou a doação do imóvel ao Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, com o propósito de instalação de nova agência do órgão federal na cidade.
2. Praças, jardins, parques e bulevares públicos urbanos constituem uma das mais expressivas manifestações do processo civilizatório, porquanto encarnam o ideal de qualidade de vida da cidade, realidade físico-cultural refinada no decorrer de longo processo histórico em que a urbe se viu transformada, de amontoado caótico de pessoas e construções toscas adensadas, em ambiente de convivência que se pretende banhado pelo saudável, belo e aprazível.
3. Tais espaços públicos são, modernamente, objeto de disciplina pelo planejamento urbano, nos termos do art. 2º, IV, da Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade), e concorrem, entre seus vários benefícios supraindividuais e intangíveis, para dissolver ou amenizar diferenças que separam os seres humanos, na esteira da generosa acessibilidade que lhes é própria. Por isso mesmo, fortalecem o sentimento de comunidade, mitigam o egoísmo e o exclusivismo do domínio privado e viabilizam nobres aspirações democráticas, de paridade e igualdade, já que neles convivem os multifacetários matizes da população: abertos a todos e compartilhados por todos, mesmo os “indesejáveis”, sem discriminação de classe, raça, gênero, credo ou moda.
4. Em vez de resíduo, mancha ou zona morta – bolsões vazios e inúteis, verdadeiras pedras no caminho da plena e absoluta explorabilidade imobiliária, a estorvarem aquilo que seria o destino inevitável do adensamento –, os espaços públicos urbanos cumprem, muito ao contrário, relevantes funções de caráter social (recreação cultural e esportiva), político (palco de manifestações e protestos populares), estético (embelezamento da paisagem artificial e natural), sanitário (ilhas de tranquilidade, de simples contemplação ou de escape da algazarra de multidões de gente e veículos) e ecológico (refúgio para a biodiversidade local). Daí o dever não discricionário do administrador de instituí-los e conservá-los adequadamente, como elementos indispensáveis ao direito à cidade sustentável, que envolve, simultaneamente, os interesses das gerações presentes e futuras, consoante o art. 2º, I, da Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade).
5. Na hipótese dos autos, entretanto, o Recurso Especial esbarra em óbice instransponível: a Súmula 280/STF impede, in casu, a análise da questão relativa à possibilidade de desafetação de bem público de uso comum por meio de lei ordinária, e não de emenda à lei orgânica municipal, visto que urge exegese de Direito local. Precedentes do STJ.
6. Ademais, inaplicável na espécie o disposto na Súmula 150/STJ, pois todos os precedentes que serviram de inspiração ao verbete tratam de questão diversa, não sendo caso em que o suposto interesse federal surge após a decisão de primeira instância e não é resolvido sem o pertinente incidente de Conflito de Competência ou o ingresso da União no feito. Insustentável o entendimento de que a competência por matéria, quando alterada por lei, deve determinar a remessa imediata dos processos sem sentença de mérito ao novo órgão destinatário da demanda. A regra do art. 87 do CPC consagra o princípio da perpetuatio jurisdictionis, ou seja, delimita a competência no momento da propositura da ação, sendo irrelevante ulterior modificação no estado de fato ou de direito.
7. De toda sorte, registre-se, em obiter dictum, que, embora seja de inequívoco interesse coletivo viabilizar a prestação de serviços a pessoas de baixa renda, não se justifica, nos dias atuais, que praças, jardins, parques e bulevares públicos, ou qualquer área verde municipal de uso comum do povo, sofram desafetação para a edificação de prédios e construções, governamentais ou não, tanto mais ao se considerar, nas cidades brasileiras, a insuficiência ou absoluta carência desses lugares de convivência social. Quando realizada sem critérios objetivos e tecnicamente sólidos, maldotada na consideração de possíveis alternativas, ou à míngua de respeito pelos valores e funções nele condensados, a desafetação de bem público transforma-se em vandalismo estatal, mais repreensível que a profanação privada, pois a dominialidade pública encontra, ou deveria encontrar, no Estado, o seu primeiro, maior e mais combativo protetor. Por outro lado, é ilegítimo, para não dizer imoral ou ímprobo, à Administração, sob o argumento do “estado de abandono” das áreas públicas, pretender motivar o seu aniquilamento absoluto, por meio de desafetação. Entender de maneira diversa corresponderia a atribuir à recriminável omissão estatal a prerrogativa de inspirar e apressar a privatização ou a transformação do bem de uso comum do povo em categoria distinta. Finalmente, tampouco há de servir de justificativa a simples alegação de não uso ou pouco uso do espaço pela população, pois a finalidade desses locais públicos não se resume, nem se esgota, na imediata e efetiva utilização, bastando a simples disponibilização, hoje e sobretudo para o futuro – um investimento ou poupança na espera de tempos de melhor compreensão da centralidade e de estima pela utilidade do patrimônio coletivo. Assim, em tese, poderá o Ministério Público, se entender conveniente, ingressar com Ação Civil Pública contra o Município recorrido, visando obter compensação pelo espaço verde urbano suprimido, de igual ou maior área, no mesmo bairro em que se localizava a praça desafetada.
8. Recurso Especial não provido.” (Recurso Especial nº 1.135.807 - RS (2009/0071647-2), 2ª Turma do STJ, Ministro Herman Benjamin, j. em 15.04.10) (original sem negrito)

GESTÃO URBANA: COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL INDELEGÁVEL

Os pleitos de reconhecimento incidental da inconstitucionalidade da lei que faculta a criação de loteamentos fechados em Birigui -- Lei Municipal nº 3.786/2000, com a modificação pelas LM 4.339/2004 e 4.047/2002 (fls. 78/86) -- e de anulação do decreto que permite o uso exclusivo das áreas públicas aos moradores do loteamento residencial Villa do Chafariz -- Decreto Municipal nº 3.179/2000 (fls. 151/152) – têm fundamento também na impossibilidade de delegação de competência municipal de gestão urbana.
A criação de bairros de acesso restrito, cujos serviços passam a ser de responsabilidade dos administradores ou de associações que representam grupos de moradores, caracteriza flagrante tentativa de poucos de se furtarem à administração pública, criando um governo paralelo com regras próprias.
Isso porque, nesses casos, são os proprietários e moradores interessados que aplicam as normas – por eles mesmos criadas, muitas vezes – sobre a circulação e permanência de pessoas, realização de serviços essencialmente públicos (coleta de lixo, varrição e manutenção das vias públicas, segurança etc.), sobre os usos dos imóveis e índices de construção etc. A petição inicial ressalta essa prática no estatuto da associação, ao dispor sobre regras de uso das áreas públicas privatizadas e de limitações urbanísticas (fl. 03).
É da petição inicial que o feudo urbano não permite que os habitantes ordinários da urbe transitem pelas ruas e áreas públicas do loteamento, “paradoxalmente por força de atos indelegáveis do poder público” (fl. 11). Destaca, mais, a delegação do poder de polícia pelo município (fl. 22). Desde a petição inicial, portanto, a proibição de delegação vem sendo prequestionada.
Os artigos 9º, 40, 49 e 50 do estatuto da associação (fls. 57, 65, 67) estabelecem obrigações de fazer e de não fazer ao proprietário de lote, sem previsão em lei, assim como promovem usurpação de função pública do poder de polícia das edificações (crime – art. 328 do Código Penal), no condicionamento das obras, reformas, ampliação ou benfeitorias feitas nas propriedades à análise prévia de uma comissão de obras privada:

Artigo 9º - É dever do associado:
c) – abster-se de dar início a construção, reforma, ampliação ou benfeitoria no lote antes de o projeto ser aprovado pela Comissão de Obras da Associação, não importando o fato de haver sido obtida aprovação da Prefeitura;
d) possuir no mínimo uma árvore do tipo padrão utilizada pela APVC em frente ao seu lote”

Artigo 40 - A Diretoria nomeará 3 (três) associados para comporem a Comissão de Obras, com mandato previsto para se encerrar juntamente com o mandato dos diretores.
Parágrafo 1º - Compete à Comissão de Obras:
a) - no prazo de 10 (dez) dias, analisar projetos de edifícios a serem construídos nos lotes (ou a serem reformados, ampliados ou acrescidos de simples benfeitorias), a fim de verificar se tais projetos obedecem às prescrições constantes do Contrato de Compromisso de Compra e Venda de Lote, com cujas condições o associado concordou;
b) - também no prazo de 10 (dez) dias, opinar sobre construções, reformas, ampliações ou benfeitorias em áreas comuns.

Artigo 49 - A construção em terreno da Villa Chafariz, a reforma, a ampliação e a introdução de benfeitorias deverão obedecer às condições que o interessado aceitou na ocasião de assinatura do Contrato de Promessa de Compra de Lote.
Parágrafo 1° - Não obstante tenha a Autoridade Municipal expedido alvará de construção ou de reforma ou de ampliação, a execução do projeto arquitetônico depende de aprovação da Comissão de Obras, cuja principal função consiste em velar pelo exato cumprimento do acordo sobre edificação firmado pelo associado na ocasião de assinatura da promessa de compra de lote.

Artigo 50 – É proibido ao associado:
a) construir calcada diferente do padrão instituído para todo o loteamento;
b) - construir galinheiros, chiqueiros, estábulos, canis e similares;
c) - plantio de árvores diversa do padrão existente.
Parágrafo único - Cães de pequeno porte poderão ser mantidos, desde que confinados nos respectivos lotes; podendo circular nas áreas comuns da associação sempre junto ao responsável mediante uso de coleira.

Essa prática autoritária, despótica, só foi possível, no caso dos autos, por força da delegação inconstitucional operada pela lei geral local e pelo decreto de permissão de uso aqui combatidos.
Mas existem atividades exclusivas que só o Estado lato sensu pode prestar, tais como os poderes de regulamentar e fiscalizar, o de policiamento, de fiscalização de normas sanitárias, serviço de trânsito, controle do meio ambiente, por exemplo.28
O Município, ao permitir que esses fatos ocorram -- por ação, omissão ou por disposição de lei local -- manifesta delegação de competência constitucional de gestão e de planejamento urbanos (art. 30, VIII, cc. art. 182, caput, CF). Essa delegação do poder de ordenar e controlar o parcelamento, o uso e a ocupação do solo urbano no interior dos loteamentos é inconstitucional. Nem poderia ser objeto de tratamento por lei municipal ou nacional, pois Nenhuma norma infraconstitucional pode subtrair competências que foram entregues pelo constituinte.29
A Carta Magna, quando quis delegar, assim o fez na hipótese de concessão ou permissão da prestação e organização dos serviços públicos de interesse local, mas com prévia licitação (art. 30, V c.c. 37, XXI). Jamais pretendeu o Legislador Constituinte delegar o poder (dever) de ordenar e controlar o solo urbano, uma vez que a política de desenvolvimento urbano é executada pelo Poder Público Municipal e visa ordenar as funções sociais da cidade em prol do bem-estar de seus habitantes (art. 182, CF).
O raciocínio dessa impossibilidade de delegação emprestamos do princípio da separação dos Poderes do art. 2º da Carta Magna e do artigo 5º e §1º da Constituição do Estado de São Paulo:

art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições”.

Como salienta J. J. GOMES CANOTILHO, esse princípio configura forma e meio de limite de poder, assegurando uma medida jurídica ao poder do Estado e, portanto, “serve para garantir e proteger a esfera jurídico-subjetiva dos indivíduos. O princípio da separação como princípio positivo assegura uma justa e adequada ordenação de funções do Estado e, conseqüentemente, intervém como esquema relacional de competências, tarefas, funções e responsabilidades dos órgãos do Estado. Nesta perspectiva, separação ou divisão de poderes significa responsabilidade pelo exercício de um poder”.30
GERALDO ATALIBA ensina que “o Texto Supremo deu ao Congresso Nacional o poder-dever de legislar. É sua obrigação fazê-lo. Não pode exonerar-se nem direta, nem indiretamente de tal função. É-lhe, peremptoriamente, vedado delegá-la, salvo explícita autorização constitucional. As delegações só podem existir, em nosso sistema, com estrita observância do preceito pertinente da Constituição.31
Se não é permitido a um Poder delegar competência ou função a outro, não pode o Município abdicar do monopólio de seu poder-dever de ordenar e controlar as ações dos particulares na cidade, e, mais ainda, no interior de loteamentos ou bairros consolidados. É sua a exclusiva competência ordenar as funções sociais da cidade em prol do bem-estar de seus habitantes (art. 30, VIII c.c. art. 182, CF).
Deste modo, com a anulação do decreto municipal que permitiu o uso das áreas públicas do loteamento, assim como com o reconhecimento incidental da inconstitucionalidade da lei local, o Município será compelido a exercer os atos de poder de polícia (controle), reordenando o uso das áreas públicas internas do bairro fechado e exercer a política das edificações (atos de gestão e ordenação urbanística e territorial).

COBRANÇAS COERCITIVAS DE TAXAS ASSOCIATIVAS
INCONSTITUCIONALIDADE E AFRONTA AO DIREITO DE LIVRE ASSOCIAÇÃO

As associações formadas a partir da constituição dos loteamentos fechados, ao fazerem cobrança coercitiva dos moradores -- associados ou não, e dos associados desistentes – valem-se de expediente que atenta frontalmente contra a liberdade de associação, que tem assento constitucional (art. 5º, XX, CF), e que, portanto, habilita a atuação do Parquet para a sua garantia (art. 127, caput, e art. 129, CF; Lei 7.347/85, art. 1º, IV e VI). É o caso dos autos.
O ajuizamento de ação judicial para questionar a obrigação de pagar contribuições associativas do gênero ou a imposição de restrições ao direito de construir, conquanto possa sugerir reflexamente a defesa de direitos patrimoniais disponíveis (a obrigação é a causa da cobrança das taxas condominiais), em verdade visa à tutela do direito constitucional de livre associação, função institucional irrenunciável atribuída ao Parquet.
Moradores são surpreendidos com essa ilegalidade e submetidos a cobranças coercitivas, inclusive por ações judiciais, demandas essas que -- a depender do entendimento civilista de alguns julgadores, sem a devida afinidade com os preceitos de direito constitucional incidentes -- podem acarretar a perda do seu imóvel residencial, a ser penhorado e leiloado para saldar uma inexistente “dívida de condomínio”, com afronta ao direito social à moradia (art. 6º, caput, CF). Bem por isso, muitos moradores, coagidos pelas cobranças, pagam esses valores ou fazem acordos.
A ilegalidade dessas cobranças, assim como do fechamento de ruas e da delegação de serviços públicos a particulares, sem licitação, foi reconhecida pelo STF no acórdão da ADIn no 1.706-4/DF, em 09.04.2008, Relator Ministro EROS GRAU, de que destacamos os seguintes trechos:

Afronta a Constituição o preceito que permite que os serviços públicos sejam prestados por particulares, independentemente de licitação (artigo 37, XXI, da CF/88). (...)
Ninguém é obrigado a associar-se ou a permanecer associado em “condomínios” que não foram regularmente constituídos.” (…)
A administração não poderá impedir o trânsito de pessoas no que toca aos bens de uso comum.” (...)
... se a Administração impede um indivíduo de circular de um lugar para outro, nisso não lesiona o direito, do indivíduo, de usar a via pública, mas sim o seu direito de liberdade.” (...)
... se a Administração fecha ao tráfego, de modo geral, uma determinada estrada, impedindo desta maneira o seu uso a um determinado indivíduo, saímos do momento individual para entrar no momento corporativo, já que, mais do que interesse individual do utente, é lesionado o interesse corporativo a que a estrada seja mantida destinada ao uso comum”
No Recurso Extraordinário nº 432.106 – RJ (Relator Min. Marco Aurélio, DJe 04.11.11) o STF apreciou a questão da cobrança das mensalidades associativas condominiais:

ASSOCIAÇÃO DE MORADORES – MENSALIDADE – AUSÊNCIA DE ADESÃO. Por não se confundir a associação de moradores com o condomínio disciplinado pela Lei nº 4.591/64, descabe, a pretexto de evitar vantagem sem causa, impor mensalidade a morador ou a proprietário de imóvel que a ela não tenha aderido. Considerações sobre o princípio da legalidade e da autonomia da manifestação de vontade – artigo 5º, incisos II e XX, da Constituição Federal.
No mais, atentem para os parâmetros da controvérsia dirimida pela Décima Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro no julgamento da Apelação Cível nº 2002.001.28930. O recorrente insurgiu-se contra a obrigação de satisfazer valores considerado o fato de haver sido criada, no local em que detém o domínio de dois lotes, a Associação de Moradores Flamboyant – AMF.
Juízo e órgão revisor afastaram a procedência da alegação, não vislumbrando ofensa aos incisos II e XX do artigo 5º da Carta da República, que foram referidos no acórdão prolatado. O Tribunal assim o fez a partir da insuficiência do Estado em viabilizar segurança. Então, firme na premissa segundo a qual o recorrente seria beneficiário desta, no que implementada pela Associação, condenou-o a satisfazer mensalidades. É induvidoso, e isto consta do próprio acórdão, não se tratar, na espécie, de condomínio em edificações ou incorporações imobiliárias regido pela Lei nº 4.591/64.
Colho da Constituição Federal que ninguém está compelido a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Embora o preceito se refira a obrigação de fazer, a concretude que lhe é própria apanha, também, obrigação de dar. Esta, ou bem se submete à manifestação de vontade, ou à previsão em lei.
Mais do que isso, a título de evitar o que se apontou como enriquecimento sem causa, esvaziou-se a regra do inciso XX do artigo 5º do Diploma Maior, a revelar que ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado. A garantia constitucional alcança não só a associação sob o ângulo formal como também tudo que resulte desse fenômeno e, iniludivelmente, a satisfação de mensalidades ou de outra parcela, seja qual for a periodicidade, à associação pressupõe a vontade livre e espontânea do cidadão em associar-se. No caso, veio o recorrente a ser condenado a pagamento em contrariedade frontal a sentimento nutrido quanto à Associação e às obrigações que dela decorreriam.
Conheço e provejo este extraordinário para julgar improcedente o pedido formulado na inicial. Inverto os ônus da sucumbência e imponho à Associação, além da responsabilidade pelas custas, os relativos aos honorários advocatícios. Por não se poder cogitar de condenação, fixo-os, atento ao disposto no artigo 20, § 4º, do Código de Processo Civil, em 20% sobre o valor da causa devidamente corrigido.

A imposição dessas contribuições pela associação ré e das limitações ao direito de construir estão impregnadas de violência contra o direito de livre associação.

O parecer desta Procuradoria de Justiça é, assim, pelo provimento integral ao recurso, incluindo a retirada das cancelas, conforme requerido e fundamentado linhas atrás (art. 461, § 5º, CPC).

São Paulo, 23 de setembro de 2015.



JOSÉ CARLOS DE FREITAS
13º Procurador de Justiça
Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos
1 Apelação Cível com revisão nº 790.668-5/3-00, Câmara Especial do Meio Ambiente, TJSP, Relatora Regina Capistrano, j. 28.08.2008.
2JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, 7ª ed., Malheiros, pág. 347; DIÓGENES GASPARINI, “Loteamento em Condomínio”, RDP, vol. 68, pág. 319, out./dez. 1983.
3JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, 4ª ed., Malheiros, p. 353.
4 in “Justitia” , vol. 164 - out./dez - 1993, p 64.
5JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, 2ª ed., Malheiros, p. 315 - grifos nossos.
6Condomínio Horizontal Edificado”, in RDP, vol. 79, pág. 199, jul./set. 1986;
7 Loteamento em Condomínio, in RDP, vol. 68, p. 318, out./dez. 1983; no mesmo sentido, aresto da Apelação nº 315.141, do 1º TACSP, 4ª Câm., v.u., Rel. Juiz Paulo Henrique, j. em 05/10/83.
8JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Tratado do Domínio Público”, 1ª ed. , Forense, 1984, pág. 326.
9 CARVALHO SANTOS, "Código Civil Brasileiro Interpretado", vol. II, 11ª edição, p. 103; PONTES DE MIRANDA, "Tratado de Direito Privado", Parte Geral, vol. II, ed. Borsoi, 1990; PAULO AFFONSO LEME MACHADO, "Direito Ambiental Brasileiro", Ma­lheiros Editores, 4ª edição, p. 254; HELY LO­PES MEIRELLES, "Direito Admi­nistrativo Bra­sileiro", 20ª edição, Malhei­ros Editores, pp. 428/9; CASTRO NUNES, “Da Fazenda Pública em Juízo”, Livraria Freitas Bastos S.A., 1ª ed., 1950, p. 524.
10HELY LO­PES MEIRELLES, ob. cit., p. 429.
11 Autor e ob. cit., p. 435.
12 JOSÉ CARLOS DE FREITAS, “Da Legalidade dos Loteamentos Fechados”, RT 750/148-170.
13Esse dispositivo também obriga o Município, que recebe essas áreas quando do registro do loteamento (art. 22), porque os bens públicos adquiridos com a implantação do projeto de loteamento urbano “guardam consigo, por razão ontológica, afetação específica ao interesse público reconhecido pelo Município ao aprovar o projeto” (ROBERTO BARROSO, in RDA, vol. 194, págs. 54-62); consulte-se acórdão do TJRJ, 1ª Câm. Cível, Rel. Desemb. C.A. Menezes Direito, v.u., j. em 14/09/93, in RDA, vol. 193, pp. 287-289.
14Ap. Cível 205.577-1 - Presi­dende Ven­ceslau - 3ª Câm. Civil TJSP, Rel. Des. Al­fredo Mi­gliore, j. 07/06/94, v.u. in JTJ/LEX 161/130; ADIn. nº 17.067-0 - São José dos Campos - Sessão Plenária do TJSP, Rel. Des. Bueno Magano, j. 26/05/93, v.u. in JTJ/LEX 150/270; ADIn nº 16.500-0 - Quatá - Sessão Plenária do TJSP, Rel. Des. Renan Lotufo, j. 24/11/93, m.v. in JTJ/LEX 154/266.
15JTJ-LEX 152/273.
16RT 318/285.
17Apelação nº 192.179-1/7 - Birigui - 1ª Câm. Civil, Rel. Des. Alexandre Germano, j. 03/08/93, v.u.; Ape­lação 201.894-1/8 - Birigui - 6ª Câm. Civil, Rel. Des. Melo Colombi, j. 03/02/94, v.u.; Apelação 223.202-1/2 - Biri­gui - 1ª Câm. Ci­vil, Rel. Des. Roque Mes­quita, j. 28/03/95, v.u; Apelação nº 270.573-1/3 - Dracena - 1ª Câmara de Direito Pú­blico, Rel. Des. Ruy Coppola, j. 05/03/96, v.u.
18ELVINO SILVA FILHO, “Loteamento Fechado e Condomínio Deitado”, RDI, vol. 14, julho/dezembro - 1984, págs. 07/35; MARCO AURÉLIO S. VIANA, “Loteamento Fechado e Loteamento Horizontal”, 1ª ed., AIDE, 1991, pág. 57, apud RT 706/162 (Apelação Cível nº 11.863/93, 6ª Câm. do TARJ (Cível), j. 16/11/93, Rel. Juiz Nilson de Castro Dião).
19 Também disciplinado pela Lei de Licitações - Lei 8666/93, art. 17, § 2º.
20RICARDO PEREIRA LIRA, “A Concessão do Direito Real de Uso”, RDA, vol. 163 - janeiro/março - 1986, pág. 20; MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, “Uso Privativo de Bem Público por Particular”, Atlas, 2010, pág. 117; SÉRGIO FERRAZ, “A Alienação de Bens Públicos na Lei Federal de Licitações”, RDA, vol. 198, out./dez. - 1994.
21JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, 34ª ed., 2011, Malheiros, p. 239.
22 MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, “Uso Privativo de Bem Público por Particular”, Atlas, 2010, pág. 118.
23Autor e ob. cit., p. 238.
24 Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§ 5o Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
25"Direito de Cons­truir", Malheiros Editores, 6ª edição, 1994, p. 102.
26"Direito Ambien­tal Brasi­leiro", Malheiros Editores, 4ª edição, p. 252.
27"Direito Urbanís­tico Bra­sileiro", Malheiros Edito­res, 2ª ed, p. 181.
28 Maria SYLvia Zanella Di Pietro, “Parcerias na Administração Pública – Concessão, Permissão, Franquia, Terceirização, Parceria Público-Privada e outras Formas”, Atlas, 5ª ed.,2005, pp. 51.
29 MICHEL TEMER, “Elementos de Direito Constitucional”, RT, 7ª ed., 1990, p.117.
30Direito Constitucional”, ed. Almedina, Coimbra, 6ª ed., 1995, p.365.

31Delegação Normativa”, RDP 98/50.

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