terça-feira, 5 de abril de 2011

A Falácia do argumento de enriquecimento ilícito

Falácia do argumento de enriquecimento ilícito
Parece-me descabida e inconsistente a opinião que defende o pagamento obrigatório dos serviços prestados, ou obras edificadas, por associação de moradores, ainda que não solicitados por quem dela não é membro, sob o argumento do enriquecimento ilícito, em virtude da pretensa fruição dos benefícios oriundos dessa atividade unilateral. De imediato, duas razões emergem: a) - há evidente desrespeito ao Superior Tribunal de Justiça, que já se manifestou em sentido oposto sobre a matéria, pacificando a questão; e b) porque a jurisprudência, anteriormente adotada nos tribunais estaduais, já mudou, evoluiu, não sendo mais correta a invocação de desastrados precedentes que adotaram essa perigosa tese, felizmente já superada.
Para desfazer e colocar por terra, definitivamente, esse ilógico argumento, é de se perguntar: caso uma empresa de segurança mandasse, por conta própria, à revelia do interessado, um guarda para vigiar um estabelecimento comercial, ou uma residência, e, ao fim do mês, endereçasse-lhe um boleto, sob o argumento de que houve benefício pelo serviço prestado, seria lícita essa cobrança? Ou, então, se um indivíduo procurasse o dono de um terreno vago e lhe dissesse que, embora sem ajuste prévio, o limpou e murou, para atender o código de postura municipal, teria esse prestador de serviço o direito ao pagamento do seu labor e materiais ali empregados, sob falso argumento do enriquecimento ilícito? Evidentemente que não! Quem decide se quer um benefício e se esse realmente lhe confere um proveito real, se é conveniente e oportuno – já que pode ser apenas um pretenso auxílio, ou, então, praticado fora de hora, em que o favorecido pode não contar com os recursos financeiros suficientes naquele momento –, é aquele que o contrata e não o prestador, que age, quando o serviço não é solicitado, por sua exclusiva conta e risco. Por isso, este deve, solitariamente, assumir o ônus de sua própria imprudente iniciativa. Do contrário, estar-se-ia criando uma nova fonte de obrigações cíveis contratuais, não decorrente da lei, mas absurdamente impositiva: a nascida, sem justa causa, pela vontade unilateral de uma das partes.
De propósito, sobre a matéria em enfoque, trazem-se à colação os bem lançados pronunciamentos de dois ilustres Desembargadores do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo. Asseverou o primeiro deles (Des. José Carlos Ferreira Alves):
10. Ora, malgrado seja incontroverso que os serviços e benfeitorias realizadas no loteamento atingiram a todos, não vislumbro ser hipótese de compelir o apelante a ter que efetuar referidos pagamentos. 11. A uma, porque é evidente que tem o direito e a liberdade constitucional de associação e, nos autos, é incontroverso o fato de que, em nenhum momento, o apelante teve a intenção de participar do quadro de associados da apelada e tampouco votou ou anuiu com as deliberações por ela tomadas. 12. A duas, porque, também ficou comprovado que, no caso sub judice, o apelante já era proprietário de imóvel localizado no loteamento do Jardim Apolo antes mesmo que houvesse a intenção da apelada em fechar as ruas, tornando-o um “loteamento fechado”, ou “condomínio fechado” de fato, porquanto não observadas as formalidades da Lei nº 4.591/64. 13. Ora, não me parece razoável compelir o proprietário de imóvel individualizado, que jamais teve a intenção de associar-se à sociedade de moradores e tampouco de viver em “loteamento fechado”, a suportar os encargos com os quais não anuiu e foram criados em momento ulterior à sua propriedade no local. 14. Com efeito, se, de um lado, as despesas com a manutenção e conservação do loteamento são tidas por benefícios aos moradores pela associação apelada, de outro, são totalmente contrárias aos interesses do apelante. 15. Afinal, sob seu enfoque, o fechamento das ruas implicou cerceamento ao direito de ir e vir, a segurança dos moradores ficou mais vulnerável do que dantes, as custas com a manutenção de portarias é deveras elevado e há controvérsias acerca de eventual valorização do imóvel, já que o condomínio formado não fora planejado. 16. Diante desse cenário, ainda que as obras realizadas e os serviços prestados sejam destinadas direta ou indiretamente a todos os moradores do loteamento, as despesas daí decorrentes não podem ser cobradas do morador não associado que, além de não ter solicitado os serviços, discorda de sua prestação.”(TRJP -Des.José Carlos Ferreira Alves, in Apelação 994090429252 (6366784000), de São José dos Campos, em 13.07.2010, 2ª Câmara de Direito Privado).
Por sua vez, enfatizou a Desembargadora Christine Santini Anafe:
Como bem salientou o MM. juízo “a quo”, “Uma vez prestados tais serviços por quem não detém legitimidade para tanto, cabe àquele que os presta arcar com os custos e a responsabilidade pelas despesas efetivadas nesse sentido. A associação autora, enquanto pessoa jurídica constituída em razão da manifestação de vontade de seus associados, deve suportar os ônus decorrentes de seus atos, descabendo impor a terceiros dela não participantes tal encargo.” Assim, mostra-se patente a nulidade dos dispositivos contratuais que estabelecem a vinculação obrigatória dos proprietários de lotes à associação autora, não havendo amparo legal para a promoção da cobrança.” (TJSP – Des. Christine Santini Anafe, em 02.06.2010, Ap. 994040726401 (3539404400), 5ª Câmara de Direito Privado, registro em 22.06.2010)
A prosperar essa extravagante e insensata tese do enriquecimento ilícito por serviços prestados sem ajuste prévio entre as partes interessadas, o direito civil perde os seus sólidos e milenares fundamentos, inaugurando-se o caos social, passando a prevalecer, de modo aleatório e imprevisível, a vontade absoluta, às vezes inescrupulosa ou eivada de suspeição, de aproveitadores, estelionatários, fraudadores e de outros elementos desse mesmo naipe. Ou seja, por conta dessa desastrada doutrina, uma pessoa fica indevidamente à mercê de outra, eis que nada os une ou ata, isto é, inexiste liame que advenha da lei, de alguma relação jurídica contratual, ou obrigação decorrente de ato ilícito. Por conseqüência, a responsabilização cível sem justa causa, por ser odiosa, não é permitida pelo Direito, nem pela Ética.
Dr. PAULO FERNANDO SILVEIRA é advogado e juiz federal aposentado.

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